sexta-feira, 17 de julho de 2009

João e Maria

Ele atirou na garota.
Como um reflexo instantâneo ele puxara o gatilho, e esta era a única coisa que lembrava quando entrou no carro. A pressão que fez com o dedo indicador, o suor quente entre a pele e a arma e o estampido quase repentino estavam se repetindo dentro de sua cabeça. Ele aguardava o semáforo abrir, tentando esclarecer para si mesmo o que fizera há minutos atrás.
Por mais que tentasse focar em alguma passagem além do tiro em si, o esforço se fazia inútil, afogado pela maldita tensão que a demora da luz verde em brilhar lhe causava. Não queria estar ali entre aquelas pessoas que, atravessando a faixa de pedestres ou esperando em seus respectivos carros, olhavam para ele por detrás daquele vidro como se já soubessem de tudo. Naquele momento todos eram puros, como que absolvidos de todos os seus pecados, uns verdadeiros santos que não carregavam culpa alguma. Exceto ele.
Sentindo-se despido, fechou os olhos. O estalo do tiro ecoou e lhe fez abri-los, como se se assustasse novamente com o barulho, como se não fosse uma lembrança. Resolveu ligar o rádio na tentativa de acalmar os ânimos. Tremendo de nervosismo, a mão direita soltou da direção, onde estava tão firmemente agarrada que doeu ao esticar os dedos para alcançar o botão on/off. Ligou. O toca-fitas começou a funcionar automaticamente, rodando uma fita que já estava colocada. Uma música começou a tocar, ainda estava na introdução. Era um violão, uma flauta... Parecia desconhecida, mas em algum tom lhe começou a soar familiar, infantil, de maneira que foi tranqüilizando-o.
Repentinamente o disparo alto e contínuo de uma buzina enfezada lhe assustou mais uma vez, de modo que ele voltou a ficar agitado e desligou o rádio num reflexo instantâneo. Olhou para cima e viu que o semáforo já apontava o verde e o homem que buzinava protestava no carro de trás contra a demora. “Vai esperar o sinal fechar de novo pra andar?!”, exclamava, com a cabeça do lado de fora do veículo. Aflito, ele tratou de acelerar o carro. Tomou a pista da esquerda rapidamente e acelerou o máximo que podia, naquela grande avenida. Entrou na primeira rua à esquerda que encontrou, era consideravelmente movimentada. Seguiu dobrando ruas aleatoriamente até que virou à direita numa ruela escura, sem outros carros circulando, e somente casas simples e pequenas existiam dos dois lados. Olhou ao redor e pelos retrovisores: não havia ninguém, era ideal.

Diminuiu a velocidade e encostou o carro à direita, sob uma árvore grande, de copa baixa. Freou, puxou o freio de mão, apoiou os pés no chão. Respirou fundo, de certa forma aliviado: sem pares de olhos para culpá-lo podia tentar fingir que nada daquilo havia acontecido. Sozinho, nem parecia que vivia a realidade! Soltou as mãos da direção vagarosamente, e esfregou-as nas pernas, sobre a calça jeans, na tentativa de se livrar do suor. Secas, ele as fechou e abriu três ou quatro vezes para aliviar a tensão. Pensou por algum momento antes do próximo movimento: ele queria ouvir aquela música, gravada naquela fita, talvez por ela, talvez um presente que ganhou, mas que ela nem teve chance de ouvir inteira pela última vez. Porém tinha a sensação de que quando corrompeu aquele estado da tal fita cometeu outro crime. Aquele estado que podia ser eternamente da garota, naquela introdução, naquele ponto em que ela abandonou a música (por que ela deixou a música naquele ponto? Por que não ouviu mais?), ele alterou. Além de acertá-la com uma bala e possivelmente matá-la, ele arruinara aquela singular impressão, provavelmente uma das muitas, mas ainda assim singular, que ela deixara no mundo e que agora estavam contadas. Resolveu abrir mão dos pensamentos, afinal, qualquer que fosse o sentido daquilo tudo, a impressão já estava arruinada.
Então ele lembrou. Lembrou de seus olhos distraídos, da cor escura dos cabelos balançando no vento da noite que acabara de baixar. Ela estava saindo de seu carro. O casaco que vestia era verde ou azul... Talvez marrom. Vestia calças jeans. Era bonita. Dane-se! Essas coisas nem interessavam, ele estava desesperadamente nervoso, estava sozinho, era muito conveniente que ela estivesse ali, que fosse mulher, que estivesse sozinha. Sentia a arma sacudindo em seu bolso e por algum momento teve alguma raiva de si mesmo, que passou rápido. Ele estava decidido, não era a primeira vez que assaltaria, nem provavelmente seria a última, embora toda vez ele desejasse que fosse a última. Não havia ninguém mais na rua, isso ele checara com alguma perícia criminosa que tinha. Ela estava distraída, mas em certo ponto percebeu a presença estranha. Os olhares se fixaram. Ele abordou-a. Talvez tivesse nascido pra isso. Ela estava agindo nos conformes, entregando a chave do carro. Ele queria a bolsa, tentou arrancar de seu ombro. Que merda! Ela segurou a bolsa firme e gritou. Foi o que bastou. O arrependimento lhe arrebatou de imediato. Maldito reflexo! Largou a arma no chão, largou-a, largou seus propósitos, a covardia e a coragem e entrou no carro. Tinha que fugir. Não era pra ter acontecido! Agora não queria mais pensar nisso. Queria esquecer. Queria ouvir a música.
Então, a mão direita foi até o botão on/off do rádio novamente, o dedo indicador pressionou-o, e o tape retomou a música de onde parara. Após o término da introdução, duas vozes, uma masculina e a outra feminina, começaram a cantar num belo dueto. E seus pensamentos começaram a levantar vôo naquelas vozes.

E ele foi ouvindo, imaginando, inventando outra vida, a sua vida se ele tivesse conhecido aquela garota em que atirara. Em outras circunstâncias, em outra época. Eles seriam amigos de infância, crescendo num amor inocente, brincando de caubói, ela era a sua noiva favorita, ele lutaria pelo seu coração, depois lhe inventaria umas serenatas debaixo da janela, não haveria amanhã. Talvez, por algum motivo se separariam, esqueceriam um do outro quando deixassem a infância para sofrer as amarguras da vida. Quem sabe a paixão ficasse guardada em algum canto de seus peitos, crescendo em silêncio, esperando ser despertada novamente. Depois esse momento chegaria, ele agora seria o herói de seus sonhos, e ela não o tiraria da cabeça em noites que nem conseguiria dormir. E mal saberia ela que ele também estaria revirando na cama, pensando nela loucamente, sem conseguir pregar os olhos. Então os dois poderiam ter se encontrado por acaso numa noite. Ela estaria dirigindo seu carro naquela rua deserta em que morava agora, ele estaria andando sem propósito pela calçada desta mesma rua. Convenientemente, numa coincidência que só por Deus. Ela desceria do carro carregando a bolsa, pensando em mil problemas e, quando se pusesse de pé, seus olhares se cruzariam. Todos os problemas virariam fumaça. Demorariam alguns segundos intermináveis para que eles se reconhecessem e quando isso acontecesse, correriam um para os braços do outro como se nunca tivessem se separado. Era fatal, que terminasse assim. E a música terminou.
Olhou para a direita. Seus olhos aguados encontraram os olhos serenos dela, seu sorriso despreocupado. Ele lhe sorriu de volta e desligou o toca-fitas. Ela abriu a porta do carro, levantou-se, saiu, fechou. Ele fez o mesmo. Seguiram então caminhando rua abaixo, misturando-se com as sombras, naquela noite que não tem mais fim.

2 comentários:

Marcel Stats disse...

no toca fitas uma musica metaleirinha..
nao sei se largo o pai rico pai pobre pra me dedicar so a este blog..

V.H. de A. Barbosa disse...

Como assim você deixa o Marcel tosco comentar primeiro?

Só na escrita da Lígia mesmo para um bruto, criminoso, homicida, sair a imaginar remorsos por causa de uma música, uma música bela, ainda por cima.

É um mundo de incongruências, assim como o nosso, porém mais belo, mais digesto.

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